Em tempos de desprezo ao conhecimento, à reflexão crítica e ao diálogo sincero, realizar um Congresso deste porte é uma ousadia, mas também um reflexo da esperança que nos move. Acreditamos que um outro mundo é possível e que o caminho para isto passa por um processo formativo que valorize a ética cristã como uma ciência que aponta valores e indicativos de ação.
O tema proposto é instigante e permite várias abordagens que se apresentam em diálogo com as ciências e com o senso comum. Autoridade e poder são questões que nos desafiam desde sempre. Na contemporaneidade, vivemos a sensação de que muitos querem e conseguem estar no lugar do poder, mas nem todos têm autoridade para tal. O poder, como o conhecemos, é quase sempre vaidoso, arrogante, e até mesmo patologicamente narcísico. É também efêmero e é sempre poder sobre os outros. Um poder para os outros é o que a ética cristã nos propõe, mas ainda estamos longe de que isto se torne realidade, seja no contexto da sociedade civil ou religiosa.
Revisitar constantemente a vida de Jesus de Nazaré é fundamental para a compreensão do que queremos dizer. Ele nos mostrou que só há um poder desejável, por ser o único que confere autoridade, e este poder só se conquista através do amor repartido sem reservas. Este amor oferente, que aparentemente vive de fracassos, é o único poder capaz de mudar o rumo da nossa história, curando pessoas, salvando vidas, cuidando para que os mais frágeis não sejam descartados. Ouçamos o professor Altamir:
O poder de Jesus está em restaurar a vida, ameaçada pelos poderes de morte e opressão, vindos até mesmo do próprio Templo. As autoridades e os que dominam têm o poder de condenar e matar, mas o poder de Jesus se contrapõe, indicando que o serviço e a proximidade são a nova configuração de uma ética no meio das pessoas. [1]
Os poderosos deste mundo absolutizam o poder, neutralizam a ética e manipulam a moral e, por isso assumem o caminho oposto, aquele que propõe a submissão do outro, o ódio e a violência, real ou simbólica, até mesmo em nome de Deus. Apelam sempre para a lei que pune por não darem conta da misericórdia e do amor que perdoa. São cruéis e desumanos, opressores das pessoas e até capazes de eliminar todos os que os contestam ou desestabilizam. Gostam de homenagens e privilégios, buscam sempre os primeiros lugares, aprovam a sociedade do espetáculo, pois nela se percebem sempre em evidência e, para garantir o seu próprio poder, apelam para um Deus todo poderoso que desconhece a bondade.
Não entenderam a revelação de Jesus sobre a kénosis de Deus. Não entenderam que o verdadeiro poder é serviço. Não entenderam que “a carteira de identidade de Deus é a misericórdia”, como nos disse o Papa Francisco[2].
Por esta razão, julgamos que a reflexão ética que retoma as questões da autoridade e do poder se faz extremamente pertinente e necessária e, assim, nos colocamos a caminho, olhando em frente, sonhando com outro paradigma de civilização, não mais o machista patriarcal, mas o holístico relacional.
Os que mais sofrem com um poder opressor, aquele que não conhece a verdadeira autoridade, são os pobres. São eles que hoje “andam no vale das sombras da morte”, como diz o salmista (Sl 23). Sobre eles a mão pesada do poder, que se faz fria pela injustiça, pesa de modo desmedido. O poder que massacra os pobres está tão distante do cristianismo como nós de marte ou de júpiter.
Instigante se fez a fala do Padre Júlio Lancelotti, um sacerdote comprometido com os mais pobres e necessitados – a população em situação de rua da cidade de São Paulo – e hoje ameaçado de morte pelo poder violento e autoritário, que não suporta os profetas. Ele nos deixou uma pergunta inquietante, que nunca pode ser esquecida e que devemos nos fazer constantemente: “Quem sente que nós os amamos?” A resposta vai nos colocar diante do tamanho do nosso compromisso com a proposta do Reino e reorientar a espiritualidade necessária para hoje, uma espiritualidade que não pode temer a ruptura com o convencional, com a hipocrisia e o farisaísmo. Resistir aos poderes deste mundo, como Jesus o fez no deserto, incomodar aos poderosos com nossa vida e nos colocarmos ao lado dos pequenos, este é o caminho para a perfeição para a qual fomos chamados. O Papa Francisco nos aponta as bem-aventuranças e o capítulo 25 do Evangelho de Mateus como critérios de verificação dos passos que estamos dando no caminho da santidade. [3]
Sabemos que todo diálogo fundado na ética produz frutos e este, que exercitamos, também produzirá, mas sabemos também que ainda precisamos de muita coragem profética para enfrentar as questões que nos foram postas e de muito amadurecimento racional e afetivo para colocá-las em prática.
Um livro já está publicado com as reflexões de alguns que se propuseram a dialogar sobre este assunto tão necessário e esperamos que as diferentes abordagens possam ser úteis a tantos quantos queiram se debruçar sobre esta temática. [4]
Que nossa esperança se renove e que o desejo de contribuir para o advento de um novo tempo, mais criativo, mais terno e mais cristão, possa existir. Que nossos sonhos de paz e justiça se concretizem e que os valores éticos apontados nos ajudem a almejar um poder que nos confira a autoridade necessária para servir a todos com humildade e alegria.
[1] ANDRADE, A. C. Fundamentos ético-teológicos do poder. Uma reflexão a partir da Bíblia. In: ANJOS, M. F; ZACHARIAS, R. (Orgs.) Ética entre poder e autoridade. Perspectivas de teologia cristã. São Paulo: SBTM, Santuário, 2019, p. 121.
[2] FRANCISCO, O nome de Deus é misericórdia. Uma conversa com Andrea Tornielli. São Paulo: Planeta, 2016, p.37.
[3] FRANCISCO. Exortação apostólica Gaudete et Exultate. A chamada à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2018, § 61.
[4] ANJOS, M. F; ZACHARIAS, R. (Orgs.) Ética entre poder e autoridade. Perspectivas de teologia cristã. São Paulo: SBTM, Santuário, 2019.