Back to Forum

Pandemia e Ética Teológica

Proponho, para este mês, uma reflexão, no contexto do Brasil, sobre a questão da pandemia do Coronavírus, na perspectiva da ética teológica cristã, a partir de três pontos que considero importantes: o medo, a violência e o projeto para o futuro.

Assim, penso que no Brasil temos que pensar a pandemia tendo como pano de fundo um populismo de viés fascista com suas fake news, polarizações, negacionismos e violência estimulada.

As ‘fake news’ vieram materializar o chamado tempo da pósverdade, a importância dos factoides, da versão dos fatos. Podemos dizer que a pergunta feita por Pilatos “O que é a verdade?” ainda está por ser respondida, pois a ideia continua mais importante que a realidade, apesar da fala do Papa Francisco na Evangelii Gaudium dizer o contrário.[1] A realidade apresentada pela vida de Jesus é que responde à pergunta de Pilatos e não qualquer palavra que possa ser dita. Hoje as palavras são expressões esdrúxulas e falseadas que ganham importância no imaginário de muitas pessoas: a terra é plana, o vírus não existe, as mortes são inventadas, super estimadas, a vacina faz mal, modifica o DNA de quem a toma, morreram só 500 mil pessoas, etc.

Assim aparece o medo. Ele pode ser pensado como “uma trindade envenenada, que apresenta para nós o encontro de três sentimentos obsessivos: a ignorância, a impotência e a humilhação”[2].

A ignorância é gerada pela comunicação desencontrada que produz desinformação, inseguranças e incertezas, como já dito. Também sabemos que o medo nos paralisa, impede qualquer ação positiva e por isso nos faz impotentes e ainda nos frustra, nos humilha.

É possível deduzir o que pode acontecer com os humilhados e abatidos. Ou se deprimem e adoecem ou desejam revidar e aí buscam um bode expiatório, um inimigo comum a quem combater e a violência se faz presente.

Podemos ainda aprofundar na análise da geração do medo. Temos hoje um medo gerado por um elemento desconhecido e invisível (o Coronavírus) e também o medo gerado por um desgoverno populista, insensível e genocida que quer se perpetuar no poder a qualquer custo e faz qualquer negócio, inclusive e sobretudo a negação do direito às pessoas serem como são ou mesmo de viverem, e que por incrível que pareça se construiu sobre um slogan religioso, contrário ao medo: “a verdade vos libertará!” “Deus acima de tudo”

É possível então falar de um medo real a partir da situação concreta da pandemia que nos pega de surpresa e nos paralisa e ainda da construção social do medo. O medo construído também nos torna ignorantes, nos paralisa e nos humilha.  

Percebemos, por isso, que os nossos medos se movem entre forças que somos incapazes de domesticar ou de conter. Nos encontramos como que entorpecidos, anestesiados, sem reação. Não sabemos rejeitar ou controlar essas forças que ameaçam tudo o que nos é caro e, pior, começamos a perceber que fomos nós mesmos que as trouxemos para perto de nós.

Na questão política, pelo voto – movido por fake news e por outras causas que merecem uma longa análise.

Na questão do vírus – pela adesão de muitos a uma narrativa falseada contra a ciência (vírus fabricado, vacina que faz mal ou que tem um chip para nos monitorar, máscara e isolamento como mecanismos de controle social) e ainda pela desregulação ecológica, fruto de uma economia consumista que enaltece um modo predador de viver, que desalojou o vírus de seu habitat natural.

Assim, é possível pensar que os medos sem desafogo e, por isso, tóxicos não podem ser derramados sobre a sua verdadeira causa pois o vírus é uma força poderosa, invisível e imune ao nosso ressentimento e os políticos também são poderosos e estão como que blindados por uma estrutura corporativa muito forte.

Como então reagir a essa situação amedrontadora que nos humilha e fragiliza?

A violência aparece como uma saída possível. Como o inimigo real é inatingível, a violência é derramada sobre aqueles que aos olhos de muitos se parecem e se comportam como ‘o outro’, aquele que nos ameaça, o estrangeiro, o diferente, o que tem outros projetos, o desconhecido que nos intimida, o inimigo fabricado.

As agressões sobre essas pessoas, fragilizadas pelo sistema (e aqui podemos citar as mulheres, a população LGBTQIa+, os indígenas, os negros, os pobres e seus defensores, os educadores) são o remédio encontrado contra a própria frustração e contra o medo que se faz próximo.

A eficácia da agressividade é medida não pelo fato de resolverem a fragilidade, mas de darem um alívio temporário ao tormento psicológico da ignorância, da impotência e da humilhação. O que vemos, então, é um aumento exponencial da violência e da apologia à mesma em nossos dias pandêmicos e amedrontados.

Concluindo, percebemos que convivemos, nesse tempo sombrio, com dois medos concomitantemente: o medo da pandemia, que é real, e o medo do outro que é inventado e que na narrativa dos negacionistas, vai acabar com a moral, a família e a religião. Este outro aparece nomeado: as esquerdas, o comunismo, a ciência, a educação, a consciência crítica. Na verdade, esses medos produziram a violência e a desregulamentação das condições de vida e saturaram as nossas vidas de mais medo, agora pelo futuro nosso e dos nossos filhos e netos.

A pergunta que não quer calar é essa: que futuro teremos? Como será o amanhã? Com a antecipação do futuro o que sabemos é que não sairemos iguais dessa situação. Sairemos melhores ou piores. Precisaremos nos reinventar.

E a Igreja? – Como disse o Cardeal Marx, de Munique: “A Igreja está em ponto morto”, na mesma situação da sociedade: amedrontada, paralisada, humilhada ou também produzindo violências reais ou simbólicas, procurando culpados reais ou fictícios.

Assim, penso que necessitamos nos reinventar a partir do Evangelho, tendo os olhos fixos em Jesus, que nos disse inúmeras vezes: “não tenhais medo”, e buscando uma ética que leve em conta sobretudo a importância da consciência, das virtudes e dos valores morais.

Termino com um pequeno poema de Dom Helder Câmara, que nos conclama, como Francisco a não deixar, nesse momento doloroso, que nos roubem a esperança:

Deixe-me acender cem vezes, mil vezes,

um milhão de vezes a esperança que ventos perversos e fortes teimam em apagar.

Que grande e bela profissão: acendedor da esperança!

[1] FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em fev.2021, § 231-133.

[2]BAUMANN. Z. O medo e o ódio têm a mesma origem. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/557602-qo-medo-e-o-odio-tem-a-mesma-origemq-entrevista-com-zygmunt-bauman. Acesso em mar 2021.