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Vulnerabilidade e resiliência en tempos de pandemia

A pandemia do coronavírus expos, de modo claro e abrupto, as nossas muitas fragilidades. O humano moderno autossuficiente e senhor da história, sua e dos outros, se viu encurralado por um organismo acelular invisível, que o obrigou a parar e acolher outros hábitos de vida, embora alguns neguem essa necessidade.

Diante de uma realidade global tão triste e sofrida, com milhões de infectados e tantos outros enlutados pelas perdas de pessoas queridas, a ética teológica precisa ter uma palavra e uma reflexão que sejam significativas e que nos ajudem no enfrentamento e superação de tempos tão difíceis. Trago, nesse momento, três palavras que julgo oportunas: vulnerabilidade, resiliência e diálogo.

Uma teologia da vulnerabilidade [1] é fundamental para que nos voltemos para nós mesmos, para o nosso modo de ser criatura em meio a outras criaturas e na relação com Deus, nosso salvador e criador. Criados à imagem e semelhança de Deus, mas sem sermos deuses, padecemos da incompletude, da imperfeição própria de quem ainda está em processo. Por isso, somos vulneráveis e frágeis; somos necessitados uns dos outros, chamados a colocar a serviço de toda a criação nossos melhores dons e carismas, para que o mundo possa ser habitável e para que nossas relações possam ser boas e saudáveis. A vulnerabilidade reconhecida nos coloca em situação de sofrimento e angústia, pela real percepção do risco de sermos feridos, em vista dos desarranjos e disfunções que a vida nos apresenta. No entanto, esta consciência nos remete também à vulnerabilidade e ao sofrimento do outro/a, e aqui está a nossa salvação. Quando nos deixamos afetar pela dor do outro nos ‘esquecemos’ das nossas dores, ou as deixamos em segundo plano, para nos mobilizarmos para que a dor do nosso irmão, a quem amamos, seja superada ou minimizada.  Assim, do reconhecimento da nossa vulnerabilidade comum, nasce a sensibilidade, a simpatia, a solidariedade, a ajuda mútua, o desejo do bem e da justiça para todos, a ternura recíproca que nos abraça e fortalece.

No entanto, a vulnerabilidade não é característica só de nós humanos, mas de todos os seres viventes, de tudo que foi criado. Entre os mais vulneráveis está nossa mãe terra, tão explorada e depredada. Nossa casa comum está se transformando em um lugar quase inabitável, ameaçador para as plantas, para os animais e também para nós. Isso se dá pelo não reconhecimento de sua fragilidade e finitude, pela nossa arrogância que não nos permite assumir, de verdade, a tarefa de cuidadores do jardim que nos foi confiado por Deus.

A globalização da indiferença, expressão cunhada pelo papa Francisco, nos levou a regredir no caminho da nossa humanização. Autorreferenciados, nos esquecemos de chorar com os que choram, de cuidar dos necessitados, de acudir quem ficou caído à beira do caminho, de olhar para a terra que agoniza. Da mesma forma, quando somos nós os feridos e necessitados, nos sentimos sós e abandonados. O círculo vicioso da violência e do descaso se completa e o caos se estabelece. Somente quando somos realmente afetados pelo padecimento dos outros é que nos compreendemos vulneráveis e isto nos redime da falta de sentido e da dor que se faz insuportável.

Quanto à resiliência, os dicionários nos afirmam que é uma palavra derivada da língua inglesa, utilizada inicialmente no campo da física para falar da propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora da deformação elástica. Figurativamente, é a capacidade que possui um material de resistir ao choque. [2]

As ciências humanas em geral já utilizam deste conceito para apontar a capacidade de indivíduos ou grupos não só de superar as situações adversas que lhe são impostas, mas de utilizá-las como oportunidades de aprimoramento de competências, de transformação positiva e de crescimento verificável.

Saber como continuar a vida, conservando aptidões e acrescentando conhecimento e sabedoria à própria história após a exposição a situações de grande risco, é uma característica daqueles que podem ser considerados resilientes. Sair restaurado, mais fortalecido, de um grande trauma ou de uma grave adversidade não é tarefa fácil, porém possível.

O reconhecimento de nossa vulnerabilidade, mas também da graça recebida do Deus que nos salva e cria nos capacita à adaptação, à flexibilidade, à resistência. [3] Como fazer de nossa fraqueza não um obstáculo, mas uma ponte, um caminho para uma mudança favorável?

O momento atual nos chama à resiliência. Precisamos sair mais fortes e melhores desta pandemia. Há os que creem nisso, mas há os pessimistas que acreditam que o ser humano mudará para pior. A situação atual, de grandes polarizações e de manifestações explícitas de ódio e violências, nos desanima. Vivemos os conflitos próprios de uma mudança de era.

Sabemos que traumas acumulados durante a vida por situações de ruptura e de violência, por sentimentos de impotência diante do sofrimento e da dor, deixam em nós cicatrizes profundas que não podem ser apagadas “assim como se apaga um desenho mal feito em um quadro negro” qualquer. [4] O importante mesmo é saber como usar essas cicatrizes a nosso favor, como fazer com que elas nunca mais voltem a sangrar e possam apenas ser rememoradas para nos estimular a encontrar soluções criativas para o presente e para o futuro e, sobretudo, saber como não causar em nós mesmos e nos outros tais cicatrizes.

A teologia moral do Diálogo nos capacita nesta direção, pelo fato de ser paraclética.

O diálogo, em uma cultura monologante, que se esqueceu de ouvir e de assumir compromissos comuns, a partir de consensos possíveis, só pode acontecer se nos deixarmos tocar pelo Espírito Paráclito, aquele que nos chama para junto de si para nos restaurar, consolar, encorajar. Isso significa que Ele é capaz de nos tirar de uma situação de deslocamento, de isolamento de abatimento, de impossibilidade, para colocar-nos amorosamente no horizonte da criatividade confiante e responsável. Coloca-nos de pé, em condições de caminhar por nós mesmos e com os outros, no caminho que Deus deseja.

Mas o Espírito é também Vento, que sopra onde quer.  Este modo de ser do Espírito está relacionado com uma característica que os psicólogos, sociólogos e educadores consideram fundamental naqueles que se mostram resilientes: a flexibilidade. Flexibilidade esta que não pode ser confundida com relativismo ético. Flexibilidade enquanto maleabilidade, capacidade de adaptação, paciência para suportar tensões sem se romper, que é o contrário de rigidez, de intolerância, de fixismo, de esquemas fechados e definitivos, impermeáveis ao diálogo e à concórdia.

Que este Espírito Santo consolador que, na sua leveza e liberdade, conforta, consola, encoraja, habilita, atrai, possa nos ensinar a importância do diálogo sincero e honesto para que, reconhecendo a nossa vulnerabilidade, sejamos resilientes para sairmos mais fortes e melhores deste tempo difícil, assumindo o firme propósito de construirmos juntos um mundo melhor, mais fraterno, amoroso e solidário.

 

 

REFERÊNCIAS

DÍAZ, Francisco Javier de la Torre. Vulnerabilidad. La profundidad de un principio de la bioética. Disponível em http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/3695

FERREIRA, A B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Cf. https://www.dicio.com.br/resiliencia/

POLETTI, R; DOBBS, B. A resiliência. A arte de dar a volta por cima. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 16.

[1] Para uma leitura atual sobre a teologia da vulnerabilidade indicamos o artigo: DÍAZ, Francisco Javier de la Torre. Vulnerabilidad. La profundidad de un principio de la bioética. Disponível em http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/3695

[2] Cf. FERREIRA, A B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Cf. https://www.dicio.com.br/resiliencia/

[3] Cf. 2 Cor 12, 10: “Pois quando sou fraco, então é que sou forte”.

[4] POLETTI, R; DOBBS, B. A resiliência. A arte de dar a volta por cima. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 16.